Um estudo publicado hoje na revista Communications Chemistry, do grupo Nature, e
liderado pelo investigador Sérgio Domingos, da Universidade de Coimbra (UC), dá
um passo importante para se compreender melhor como funcionam os mecanismos
de reconhecimento e autorreconhecimento das moléculas quirais, moléculas que
têm assumido um papel importante na química farmacêutica.
O reconhecimento molecular quiral é um fenómeno fundamental na ciência
biomolecular, relevante, por exemplo, na produção de fármacos. Genericamente,
explica Sérgio Domingos, «o reconhecimento quiral é a habilidade que uma
molécula quiral tem para distinguir entre dois enantiómeros de outra molécula
quiral. Enantiómeros são moléculas que são imagens no espelho uma da outra
e não são sobreponíveis, nem por rotação, nem por translação. Consideremos
uma molécula quiral (R) e a sua imagem especular (S)».
Podemos pensar, por exemplo, «num aperto de mão entre duas pessoas: uma
mão direita e outra mão direita encaixam bem. Agora se uma das pessoas der
a mão esquerda, as mãos já não encaixam tão bem. Este é um exemplo
macroscópico de um fenómeno que existe à escala molecular e que tem
implicações em processos químicos e biológicos. Por exemplo, muitos
medicamentos são produzidos com compostos de uma só quiralidade (R ou S)
porque a interação com os recetores no nosso corpo é por vezes muito
diferente entre elas», ilustra o investigador do Centro de Física da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC).
O estudo que, além da Universidade de Coimbra, envolveu o Deutsches Elektronen-
Synchrotron (DESY) e a Universidade de Bochum, na Alemanha, incidiu no
autorreconhecimento quiral, revelando sobretudo o que acontece quando dois R’s ou
dois S’s da mesma molécula se emparelham para formar um dímero (duas unidades
ligadas por uma ligação não covalente) RR ou SS, ou quando um R se emparelha
com um S, formando um RS ou SR. Os mecanismos de interação destas duas
vertentes não se manifestam de forma análoga e têm, pois, implicações em muitos
processos biológicos.
Para tal, a equipa escolheu o sistema molecular quiral e aromático “óxido de
estireno”, que existe nas duas formas S e R e tem características estruturais ideais
para estudar as interações moleculares mais fracas. Para além disso, esclarece
Sérgio Domingos, «este anel aromático é um motivo molecular recorrente em
sistemas biológicos e que tem muita influência em processos de agregação
em proteínas e por isso é um protótipo muito estudado».
Mais especificamente, aprofunda o investigador, o objetivo deste estudo era a
«deteção experimental de todas as possibilidades de encaixe entre R’s e S’s
deste sistema aromático quiral (protótipo) e tentar perceber que forças
mobilizam a preferência entre encaixes do tipo RR ou do tipo RS. Este
processo de autorreconhecimento é crucial em muitos processos biológicos,
um deles a eficiência com que um medicamento interage com o recetor no
nosso corpo. Queríamos aprofundar o conhecimento sobre que tipo de
interações controlam este emparelhamento de moléculas quirais e até que
ponto estas interações podem promover uma assimetria no processo de
reconhecimento. Este equilíbrio/desequilíbrio pode ajudar-nos a desvendar os
segredos da homoquiralidade da vida».
Para alcançar o objetivo, os cientistas utilizaram a técnica de espectroscopia de
micro-ondas, que lhes permitiu estudar os estados quânticos de rotação dos dímeros
RS e RR em alta resolução, na fase gasosa. As experiências foram realizadas no
sincrotrão (acelerador de partículas) de eletrões alemão - Deutsches Elektronen-
Synchrotron (DESY), em Hamburgo, uma das mais sofisticadas infraestruturas de
investigação científica na Europa.
Este método experimental foi complementado com cálculos teóricos, que por sua
vez permitiram identificar as estruturas tridimensionais dos dez pares RR e RS mais
estáveis e estudar detalhadamente as interações que promovem o emparelhamento
em cada caso. Os investigadores concluíram que «a parte aromática das
moléculas tem uma influência tremenda na gestão do encaixe entre pares, e
que esse ajuste de contactos se pronuncia diferentemente para pares RR e RS,
favorecendo o emparelhamento homoquiral, ou seja, do tipo RR. No entanto,
este desequilíbrio não se pronunciou tão afincadamente como esperado, e o
nosso estudo revela que isto se deve à flexibilidade estrutural e caráter
dinâmico do autorreconhecimento no processo de encaixe», destaca Sérgio
Domingos.
Este estudo permitiu perceber que o «emparelhamento de moléculas quirais
ganha um nível de complexidade ainda mais acrescido quando o mecanismo
de encaixe é dominado por partes das moléculas que são aromáticas.
Estas
condições podem desfavorecer a discriminação quiral em processos de
ativação de moléculas medicinais com recetores no nosso corpo», conclui.
A investigação, cujo artigo científico está disponível em:
https://www.nature.com/commschem/, foi financiada pelo Centro de Investigação
Colaborativa 1319 ELCH- Extreme light for sensing and driving molecular chirality.
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